terça-feira, 5 de abril de 2011

J. J. VEIGA

J. J. VEIGA
José Jacinto Veiga nasceu em Corumbá, Goiás, em 2 de fevereiro de 1915. Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1935, onde se formou em Direito (1943). De 1945 a 1950 trabalhou na BBC de Londres como comentarista. Ao retornar, em 1951, passou a trabalhar na imprensa. Em 1972, ingressou na Fundação Getúlio Vargas para exercer as funções de editor no Instituto de Documentação. Estreou com Os Cavalinhos de Paltiplanto (1959), livro de contos que, apesar de premiado, alcançou pouca divulgação.

§        Romance:

- 1966: A Hora dos Ruminantes;
- 1972: Sombras de Reis Barbudos;
- 1976: Os Pecados da Tribo;
- 1982: Aquele Mundo de Vasabarros;
- 1985: Torvelinho Dia e Noite.

§        Contos:

- 1968: A Máquina Extraviada;
- 1980: De Jogos e Festas.



A Máquina Extraviada

Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou - não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas - quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.
A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.
Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.
A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. E claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro. (...)
(...) Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.
Devemos reconhecer - aliás todos reconhecem - que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica caol nas partes de metal dourado, esfrega, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo - e a máquina fica faiscando como jóia.
Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia. (...)
(...) Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso - aqui para nós - eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu - e creio que também a grande maioria dos munícipes - não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando.
O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos), peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.

ESTÉTICA

Realismo mágico é a marca registrada da ficção de J. J. Veiga. Como nas telas de um Magritte ou um Delvaux, mestres de pintura surrealista, a cinzentice da realidade cotidiana é atravessada por um objeto inusitado, criando-se uma atmosfera de magia. O contraponto entre o meio rural e os padrões urbanos (representados pela máquina extraviada) é suficiente para o gerar: invadido pelo mecanismo estranho à sua natureza, sem que ninguém o encomendasse ou soubesse para que servia, o sertão de repente se povoa de mistério. É que a máquina, banal no ambiente das cidades grandes, revela toda a sua magia ao defrontar-se com o mundo sertanejo. Mal comparando, era como se um disco voador pousasse na praça da matriz dum povoado rural, ou como se um totem de ferro despencasse misteriosamente do alto. Ao contrário do culto futurista à máquina, que a reverenciava como sinônimo de modernidade, o inesperado objeto desencadeia reações controvertidas: inicialmente, o povo se desinteressou – mas acabou desejando que ela se transformasse em “monumento municipal” -, e os políticos trataram logo de ver se a súbita aparição lhes poderia render votos – mas logo perderam o interesse. O tom é de fábula, mas de fábula moderna, engendrada pela visão do desconhecido, do perigo, do anti-humano: ingênuo, preservando no olhar as fantasias da infância, o narrador encanta-se com o espetáculo da estranha máquina “descarregada na frente da Prefeitura”. O estilo, com deixar transparecer a impregnação da língua inglesa, flui num andamento próprio de quem conta um caso, prestando-se bem para exprimir a sensação de maravilha que se perderá se a máquina começar “a trabalhar (...): estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina”.[1]


[1] MOISÉS, Massaud. A Literatura através dos textos. 24ª ed. CULTRIX. São Paulo, 2004.

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