terça-feira, 5 de abril de 2011

CLARICE LISPECTOR

CLARICE LISPECTOR
Nasceu em Tchetchelnick (Ucrânia, URSS), a 10 de dezembro de 1925. Seus pais imigraram para o Brasil quando ela contava dois meses de idade. No Recife, cursa o primário e o secundário. Transferindo-se para o Rio de Janeiro, ingressa na Faculdade de Direito. Forma-se em 1944, ano em que publica o primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, fartamente aplaudido pela crítica. Casando-se nessa mesma altura com um diplomata, afasta-se do país durante longos períodos (entre 1945 e 1949 e 1952 e 1960), mas não deixa de cultivar a Literatura, numa ascensão crescente e de livro para livro.

§        Romances:

- 1946: O Lustre;
- 1949: A Cidade Sitiada;
- 1961: A Maçã no Escuro;
- 1964: A Paixão Segundo G. H.;
- 1969: Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres;
- 1973: Água Viva;
- 1977: A Hora da Estrela.



§        Contos:

- 1952: Alguns Contos;
- 1960: Laços de Família;
- 1964: A Legião Estrangeira;
- 1974: A Via Crucis do Corpo.

§        Crônicas e Literatura Infantil.

- 1952: Alguns Contos;

Uma Galinha

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi, pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado. (...)
(...) Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal, porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem! (...)
(...) Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria, mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

ESTÉTICA

Estreando com um romance (Perto do Coração Selvagem, 1944), Clarice Lispector vinha renovar e, de certo modo, definir a tendência introspectiva de nossa ficção dos anos 30. Mas somente em 1960, depois de uma experiência em 1952, resolve publicar um livro de contos (Laços de Família), do qual se extraiu “Uma Galinha”. Focalizando-se inicialmente o protagonista central, vê-se que apenas na aparência é a galinha. Com efeito, a ave funciona como superfície de reflexão ou refração da psicologia das “pessoas” que a circundam: a narradora desloca o eixo da atenção para o animal, mas seu objetivo consiste em detectar uma reação vivencial em face de uma situação corriqueira. Por fim, o bípede de asas simbolizaria o homem à mercê de seu semelhante, do tempo e da morte. Nessa tríplice conotação adquirida pelo galináceo reside o toque de grandeza e novidade do conto. Desse contraste entre o primeiro e o segundo plano do tecido metafórico é que resulta a tensão poética, indício claro de uma narrativa realizada. Em semelhante atmosfera se localiza o epílogo, carregado de uma naturalidade enigmática e lendária (“mataram-na, comeram-na e passaram-se anos”), à volta de três circunstâncias que significariam os três apetites fundamentais da espécie humana: matar, comer e viver. Completo o itinerário, o conto fecha-se, pleno, acabado e modelar.[1]


[1] MOISÉS, Massaud. A Literatura através dos textos. 24ª ed. CULTRIX. São Paulo, 2004.

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