ANÍBAL MACHADO
Nasceu em Sabará, Minas Gerais, a 9 de dezembro de 1894. Em Belo Horizonte , formou-se em Direito (1917). Mudando-se para Aiuroca, lá exerceu as funções de promotor, mas retornou à capital do Estado, onde se ligou a Carlos Drummond de Andrade, João Alphonsus e outros colaboradores do Diário de Minas. Transferindo-se para o Rio de Janeiro passou a trabalhar no Registro Civil. Faleceu no Rio de Janeiro, a 20 de janeiro de 1964.
§ Bibliografia:
- 1944: Vila Feliz;
- 1951: ABC das Catástrofes e Topografia da Insônia;
- 1955: Poemas em Prosa;
- 1957: Caderno de João;
- 1959: Histórias Reunidas;
- 1965: nA Morte da Porta – Estandarte e Outras Histórias.
Ainda postumamente viria a público uma narrativa mais longa, há muito tempo anunciada: João Ternura (1965).
O Desfile dos Chapéus
O comparecimento de todos os chapéus que tive e usei - não posso precisar se começou no sonho e aí terminou, ou se no sonho teve início e prosseguiu no estado de vigília.
Apresentando-se em fila indiana ou em grupos, esses chapéus se deslocavam com movimentos próprios, o que tornava ainda mais bizarra sua aparição.
Os que vinham em grupo voavam baixo num céu de chumbo - céu que se explica na visão onírica pela leitura dos jornais da véspera, carregados mais que nunca de acontecimentos nefastos. E o sonho daquela noite deixara de ser um armistício de repouso.
Eu sabia que das peças de indumentária o chapéu é a que mais transforma a figura do homem, a que mais perto priva de sua intimidade - conseqüência da vizinhança próxima do cérebro, do qual absorve as irradiações. Enquanto novo, é um protetor, se não elemento decorativo; depois de usado, vira documento moral.
A recordação da lenda tibetana de um chapéu que o vento arrancara a alguém e projetara longe, numa campina, onde o deixaram ficar, aí se transformando num ser vivo e demoníaco - essa recordação de antiga leitura teria também influído como "conteúdo latente" do sonho que se vai referir.
Foi o caso que me senti levado, não sei como, a uma região severa onde entrei com a certeza de que "não era ali".
Cheguei mesmo a repetir alto: - "não é aqui! não é aqui!"
Não era ali, o quê? Pois não poderia ser ali?...
Eu vagava numa paisagem fora de uso, com massas de sombra e árvores despidas.
Qualquer coisa de cemitério abandonado, com movimentos e rumores - assobios fininhos, cochichos, começos indistintos de vaia - em desacordo com a sua tranqüila grandeza. Havia Mesmo em tudo uma malícia difusa, secreta intenção de fazer mal, zombar da gente...
Ao fundo, colunatas e uma estátua de mármore num espaço desolado como nos primeiros quadros de Chirico.
Ao lado, como sempre, uma piscina - piscina que se coloca freqüentemente dos meus sonhos, tal um túmulo aberto à minha espera. Várias crianças já mortas e esbranquiçadas retirei dela...
Passeava eu então distraído. A campina era florida. Não sei bem se campina, corredor de casarão colonial ou praça pública, pois o cenário mudava sempre, posto que sempre a mesma fosse a atmosfera.
Eu procurava informações debaixo das pedras, atrás das colunas, no alto das árvores. Queria saber onde se conspirava contra mim. E como ventasse de maneira esquisita, pareceu-me que qualquer resolução já havia sido tomada, tanto assim que um de meus antepassados vinha chegando, ouvindo-se bem seus passos. Ao percebê-lo, reclamei que nada mais eu tinha com ele, que a vida agora era outra coisa; que até faria melhor se voltasse ao túmulo donde não deveria nunca ter saído. Só passou minha aflição, quando o vi retirar-se resmungando... Devia estar ressentido com as minhas palavras, mas que fazer? (...)
(...) Ah! chapéus... com as cicatrizes do vento, do suor, das chuvas, da lágrimas!... Aquele, furado, que vem oscilando como um bêbado, cheguei a estendê-lo a um rico, numa tarde de chuva. E, envergonhado, ele se recolheu a si mesmo antes de receber a esmola.
"Chapéus dos maus e bons momentos, refazendo a história de uma vida revogada - a cabeça que um dia cobristes vira-se agora para o lado onde nascem as coisas, onde a vida recomeça. A gente aprende enfim a transformar a dor em alegria e incorporando-se a tudo e tudo absorvendo, acaba confundindo-se, anonimamente, na substância da criação. (...)
"Chapéus dos maus e bons momentos, refazendo a história de uma vida revogada - a cabeça que um dia cobristes vira-se agora para o lado onde nascem as coisas, onde a vida recomeça. A gente aprende enfim a transformar a dor em alegria e incorporando-se a tudo e tudo absorvendo, acaba confundindo-se, anonimamente, na substância da criação. (...)
ESTÉTICA
Apesar de reduzida obra que nos legou, Aníbal Machado é autor de alguns contos de superior feitura, como este “O Desfile dos Chapéus”. Com exceção de breves anotações, a narrativa gravita em torno de um sonho. Um sonho tão intenso que o narrador, ao recontá-lo, não sabe ao certo onde pára o espetáculo do inconsciente e onde começa a vigília. Como tal, a primeira observação a fazer diz respeito ao caráter freudiano do relato: evidente no seu todo, ainda se concretiza na referência explícita ao “conteúdo latente”, que faz supor alguém familiarizado com a terminologia do fundador da Psicanálise. Nos sonhos, a simbologia do chapéu ganha outras conotações, dependendo do sonhador. Pode significar, como a psicologia profunda de Jung ensina, uma idéia ou uma visão do mundo. Assim, a série de chapéus designa as várias idades do narrador, bem como as idéias ou as convicções que o guiavam na existência. Note-se que o discurso irrompe depois que o sonho ia adiantado, de modo a sugerir que a angústia do sonhador apenas acabaria quando terminasse o desfile dos chapéus. Mas tinha sido preciso sonhar para o saber, o que nos remete para o ponto de partida. Ou seja, para a confirmação de que o sonho, como revelaram os estudos psicanalíticos, trazem à torna os “conteúdos latentes” do inconsciente. Observem-se por fim o brilho e a escorreição da linguagem, próprios de um escritor sempre em busca do texto perfeito. E ainda o clima surrealista, emprestado não apenas pelo sonho em si, mas também pela menção a De Chirico, um pintor surrealista metafísico, identificado numa fase da sua trajetória pelas insólitas paisagens de “colunatas e uma estátua de mármore num espaço desolado”.[1]
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