AUTRAN DOURADO
Valdomiro Freitas Autran Dourado nasceu em Patos, Minas Gerais, a 18 de janeiro de 1926. Formado em Direito em Belo Horizonte , passou a trabalhar nos Diários Associados e a conviver com um grupo de escritores mineiros surgidos na década de 40. Mudando-se para o Rio de Janeiro em 1954, continuou a sua produção literária, iniciada com Teia (1947) e Aprendizado (1980).
§ Publicou Contos:
- 1955: Três Histórias na Praia;
- 1957: Nove Histórias em Grupo de Três;
- 1972: Solidão Solitude;
- 1978: Armas e Corações.
§ Romances:
- 1952: Tempo de Amar;
- 1961: A Barca dos Homens;
- 1964: Uma Vida em Segredo;
- 1967: Ópera dos Mortos;
- 1970: Risco do Bordado;
- 1974: Os Sinos da Agonia;
- 1976: Novelário de Donga Novais;
- 1981: As Imaginações Pecaminosas;
- 1984: A Serviço Del’ Rei;
- 1994: Ópera dos Fantoches.
§ Ensaio:
- 1973: Uma Poética de Romance;
- 1982: Uma O Meu Mestre Imaginário.
Ópera dos Mortos
A narrativa transcorre em algum lugar do sul de Minas Gerais, num tempo incerto, quando ainda se andava de carro de bois. Num velho sobrado, imponente e de “porte senhorial”, duas gerações de Honórios Cotas se sucederam, até que Rosalina, o último dos seus membros, ficasse sozinha, tendo apenas a companhia da empregada Quiquina. Reclusas, afastadas do povo, pareciam envoltas num halo de mistério. Um dia chega ao povoado um moço de Paracatu, José Feliciano, e é contratado por Rosalina, que agora passa as noites a bebericar. Do tratamento hostil que a solarenga dispensa ao novo empregado até entregar-se a ele, foi tudo uma questão de tempo. O filho desses amores nasce morto. José Feliciano enterra-o e Rosalina enlouquece.
O SOBRADO
O senhor querendo saber, primeiro veja:
Ali naquela casa de muitas janelas de bandeiras coloridas vivia Rosalina. Casa de gente de casta, segundo eles antigamente. Ainda conserva a imponência e o porte senhorial, o ar solarengo que o tempo de todo não comeu. As cores das janelas e da porta estão lavadas de velhas, o reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida mostra mesmo as pedras e os tijolos e as taipas de sua carne e ossos, feitos para durar toda a vida; vidros quebrados nas vidraças, resultado do ataque da meninada nos dias de reinação, quando vinham provocar Rosalina (não de propósito e ruindade, mais sem-que-fazer de menino), escondida detrás das cortinas e reposteiros; nos peitoris das sacadas de ferro rendilhado formando flores estilizadas, setas, volutas, esses e gregas, faltam muitas das pinhas de cristal facetado cor de vinho que arrematavam nas cantoneiras a leveza daqueles balcões.
O senhor atente depois para o velho sobrado com a memória, com o coração – imagine, mais do que com os olhos, os olhos são apenas conduto, o olhar é que importa. Estique bem a vista, mire o casarão como num espelho, e procure ver do outro lado, no fundo do lago, mais além do além, no fundo do tempo. Recue no tempo, nas calendas, a gente vai imaginando, chegue até ao tempo do coronel Honório – João Capistrano Honório Cota, de nome e conhecimento geral da gente, homem cumpridor, de quem o senhor tanto quer saber, de quem já conhece a fama, de ouvido – de quem se falará mais adiante, nas terras dele, ou melhor, do pai – Lucas Procópio Honório Cota, homem de quem a gente se lembra por ouvir dizer, de passado escondido e muito tenebroso, coisas contadas em horas mortas, esfumado, já lenda-já história, lembranças se azulando, paulista de torna-viagem das Minas, de longes sertões, quando o ouro secou para a desgraça geral, as grupiaras emudeceram; e eles tiveram de voltar, esquecidos das pedras e do outro, das sonhadas riquezas impossíveis, criadores de gado, potentados, esbanjadores ou unhas-de-fome – conforme a experiência tida ou a natureza, fazendeiros agora, lúbricos, negreiros, incestuosos, demarcadores, ladrilhando com seus filhos e escravos este chão deserto, navegadores de montes e montanhas, políticos e sonegadores, e vieram plantando fazendas, cercando currais, montando pousos e vendas, semeando cidades no grande país das Gerais, buscando as terras boas de plantio, as terras roxas e de outras cores em que o sangue e as lágrimas entram como corantes – nas datas de que, por doação e todos os mais requisitos da lei, se ergueu a Igreja do Carmo e se fez o Largo.
Um recuo no tempo, pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (não, oh tempo, pare as suas engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era, só pra gente ver, a gente carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora, que cimenta, castradora); esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do destino.
A casa fica no Largo do Carmo, onde se plantou a igreja. A Igreja do Carmo foi a primeira construção de pedra e alvenaria da cidade. Depois é que Lucas Procópio mandou construir a sua casa (na época apenas a parte de baixo), tentando fazer parelha com a igreja. Uma igreja em que se procurou no risco e na fachada seguir a experiência que os homens trouxeram das igrejas de Outro Preto e São João del-Rei: só que mais pobre, sem a riqueza dos frontões de pedra em que o barroco brinca as suas volutas vadias; mesmo assim imponente, toda branca, com seus cunhais e marcos de pedra, porta almofadada, as duas janelas-de-púlpito ladeando em cima o vão da porta, as cornijas trabalhadas em curvas leves, a torre solitária nascendo na cumeeira do telhado de duas-águas. Da torre pode se ver, em vôo de pássaro, o casario que cresceu para trás da Igreja do Carmo soberana, sobranceira, dominando de frente toda a cidade. /Da torre pode se ver a lisura vazia do largo de terra batida, onde às vezes se formam redemoinhos coriscantes de poeira, o cruzeiro no meio da praça, as ruas que dali partem, os muros brancos do cemitério, as voçorocas de goelas vermelhas na beira da estrada que deixa a cidade. (...).
ESTÉTICA
Fazendo lembrar “A Rose for Emily”, de William Faulkner, Ópera dos Mortos caracteriza-se, antes de mais nada, por sua atmosfera sombria, onde contracenam as forças de loucura, encarnadas em Rosalina, e as forças do instinto, representadas por José Feliciano. A narrativa é contada na primeira pessoa, como se uma testemunha evocasse para o autor toda a tragédia desenrolada no sobrado. História e Mito se mesclam, reclamando do ouvinte, como sublinha o narrador, o auxílio simultâneo da memória, do coração e da fantasia. Note-se, ainda, a identificação do tempo com a morte, expressa por meio do relógio parado: denota, juntamente com os demais traços, a ficção intimista, a sondagem num mundo de espectros ou nas psicologias de exceção. Denso, filiado à melhor porção da linhagem introspectiva dos anos 30, Ópera dos Mortos integra, com todo o merecimento, uma coleção das obras mais representativas da literatura deste século, patrocinada pela UNESCO.[1]
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