Ciro Versiani dos Anjos nasceu a 5 de outubro de 1906, em Montes Claros (Minas Gerais). Na cidade natal, fez os estudos primários, parte dos secundários e a iniciação literária. Transladando-se para Belo Horizonte em 1924, ingressa no curso de Direito. Formado, após tentar a advocacia em Montes Claros , volta a Belo Horizonte, ao funcionalismo público e à imprensa. Em 1964, muda-se para o Rio de Janeiro, onde se torna funcionário da Justiça e, mais tarde, Diretor do IPASE. Entre 1952 e 1955, exerceu as funções de leitor de Estudos Brasileiros no México e em Portugal. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras. Faleceu no Rio de Janeiro, em 3 de agosto de 1994.
§ Obras:
- 1937: O Amanuense Belmiro;
- 1945: Abdias;
- 1952: Explorações do Tempo;
- 1956: A Montanha;
- 1959: A Criação Literária;
- 1952: Explorações no Tempo.
O Amanuense Belmiro
O Amanuense Belmiro consiste numa espécie de diário escrito pela personagem que confere título ao romance. Funcionário público, desiludido, com trinta e oito anos de idade, intoxicado de Literatura, apaixona-se por Carmélia, mas não se atreve a confessar-lhe o sentimento, nutrido que estava de muita fantasia adolescente. Até que um dia a moça se casa com o primo. Desfeito o sonho romântico, Belmiro mergulha ainda mais no tédio que lhe inspira o viver de amanuense. No curso desse tênue fio narrativo, antes sugerido que arquitetado, vão desfilando outras personagens, como Emília e Francisca, velhas irmãs do herói, Jandira, Silviano, Glicério, Florêncio, Rodelvim e Carolino. O Capítulo que se vai ler corresponde ao núcleo dramático da fabulação, ou seja, o conhecimento de Carmélia (Arabela):
Aconteceu-me ontem uma coisa realmente extraordinária. Não tendo conseguido conter-me em casa, desci para a Avenida, segundo habito antigo. Já ela estava repleta de carnavalescos, que aproveitavam, como podiam, sua terceira noite.
Pus-me a examinar colombinas fáceis, do lado da Praça Sete, quando inesperadamente me vi envolvido no fluxo de um cordão. Procurei desvencilhar-me, como pude, mas a onda humana vinha imensa, crescendo em torno de mim, por trás, pela frente e pelos flancos. Entreguei-me, então, aquela humanidade que me pareceu mais cansada que alegre. Os sambas eram tristes e homens pingavam suor. Um máscara-de-macaco deu-me o braço e mandou-me cantar. Respondi-lhe que, em rapaz, consumi a garganta em serenatas e que esta, já agora, não ajudava. Imagino a figura que fiz, de colarinho alto e pince-nez, no meio daquela roda alegre, pois os foliões e engraçaram comigo, e fui, por momentos, o atrativo do cordão. Tanto fizeram que, sem perceber o disparate, me pus a entoar velha canção de Vila Caraíbas. (...)
(...) O mito donzela Arabela tem enchido minha vida. Esse absurdo romantismo de Vila Caraíbas tem uma força que supera as zombarias do Belmiro sofisticado e faz crescer, desmesuradamente, em mim, um Belmiro patético e obscuro. Mas viviam os mitos, que são o pão dos homens.
Nesta noite de quarta-feira de cinzas, chuvosa e reflexiva, bem noto que vou entrando numa fase da vida em que o espírito abre mão de suas conquistas, e o homem procura a infância, numa comovente pesquisa das remotas origens do ser.
Há muito que ando em estado de entrega. Entregar-se a gente as puras e melhores emoções, renunciar aos rumos da inteligência e viver simplesmente pela sensibilidade — descendo de novo cautelosamente, a margem do caminho, o véu que cobre a face real das coisas e que foi, aqui e ali, descerrado por mão imprudente — parece-me a única estrada possível. Onde houver claridade, converta-se em fraca luz de crepúsculo, para que as coisas se tornem indefinidas e possamos gerar nossos fantasmas. Seria uma fórmula para nos conciliarmos com o mundo.
ESTÉTICA
Ciro dos Anjos pertence a uma linhagem, a machadiana, menos numerosa do que seria de esperar: resultando de uma soma de condições individuais, não apenas de uma técnica literária, a obra do criado de Capitu rejeita as imitações e somente admite as afinidades eletivas. O Amanuense Belmiro mostra que a derradeira exigência, embora parcialmente, se cumpriu: romance na primeira pessoa, de memórias, a insinuar a pouca importância do calendário para quem vive alimentando amarga solidão, desligado da realidade cotidiana e miúda, alheio à passagem monótona das horas, exclusivamente absorto na contemplação de seu tempo interior. Evoluindo como que em função de embriaguez geral, a alegorização ganha logo o plano dos mitos, a ponto de fazer que o narrador evoque Arabela e termine num viva aos “mitos, que são o pão dos homens”. Tudo bem ponderado, leva ao conhecimento de uma individualidade sensível e tímida, porém atenta às perplexidades implícitas nos acontecimentos mais corriqueiros, como o Carnaval, à procura de “uma fórmula para nos conciliarmos com o mundo”. Aqui, raia uma luz de esperança que colide frontalmente com o desalento da cosmovisão machadiana. No mais, todavia, percebe-se franca analogia entre o escritor carioca e o mineiro: tema extraído da mornidão diária, a linguagem refinada, vernácula e contida, e a perscrutação microscópica da realidade, visto que não significa despersonalização, a semelhança de ambos decisivamente favorece a Ciro dos Anjos, - é lícito concluir[1].
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