sexta-feira, 1 de abril de 2011

RUBEM FONSECA



RUBEM FONSECA

José Rubem Fonseca nasceu a 11 de maio de 1925, em Juiz de Fora, Minas Gerais, mas passou a residir no Rio de Janeiro desde os oito anos de idade. Além de formado em Direito, estudou Administração e Comunicação nas Universidades de New York e Boston, embora chamasse a atenção da crítica ao estrear com o volume de contos Os Prisioneiros (1963º, foi ao vencer o concurso de contos do Paraná do ano de 1968 que o seu nome começou a ganhar notoriedade, nacional e internacional.

§        Bibliografia:

- 1965: A Coleira do Cão;
- 1969: Lúcia McCartney;
- 1973: O Homem de Fevereiro ou Março; O Caso Morel;
- 1975: Feliz Ano Novo;
- 1979: O Cobrador;
- 1983: A Grande Arte;
- 1985: Bufo & Spallanzani;
- 1990: Agosto;
- 1992: O Romance Negro.

Passeio Noturno – Parte I

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrafônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala? perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.
Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?
A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.
Vamos dar uma volta de carro? convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.
Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na Avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.
Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.
A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo? perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.

ESTÉTICA

Embora os contos de Rubem Fonseca se distingam entre si pela estrutura, fazendo pensar que não existe uma narrativa igual a outra, o “Passeio Noturno” oferece-nos um bom exemplo das características peculiares do autor. A primeira delas diz respeito ao tom realista, de um realismo feroz, cruel, que não cede ante os gestos mais violentos ou as palavras de baixo calão. Umas e outras, no entanto, perfeitamente adequados ao contexto, uma vez que o clima todo é de uma tensão explosiva, ainda que por vezes silenciosa. O conto passa-se em dois planos: o doméstico, em torno de uma família de classe média alta igual a centenas, e o das ruas, onde o protagonista maneja o seu automóvel de luxo como instrumento de morte. Uma ameaça de a narrativa se tornar surrealista não se cumpre: beira o insólito, mas sem nele despencar. Não há fantástico nenhum; o enredo, apesar de estranho, ancora no cotidiano, divisado sem complacências. Basta, para confirmá-lo, que se abram os jornais: a comédia/tragédia da vida guarda uma gratuidade ácida, os imprevistos sucedem a cada passo. É neste quadrante que se situa a ficção de Rubem Fonseca. Estilo de marcar próprias, inconfundíveis, serve a um observador implacável do dia-a-dia, que dele arranca histórias sempre inusitadas. Elevado à categoria de um dos nossos mais bem-dotados ficcionistas contemporâneos, graças à fina qualidade artesanal e conceptiva, Rubem Fonseca desfruta de um merecido renome nacional e internacional.[1]


[1] MOISÉS, Massaud. A Literatura através dos textos. 24ª ed. CULTRIX. São Paulo, 2004.

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