sexta-feira, 1 de abril de 2011

RUBEM BRAGA

RUBEM BRAGA
Nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, a 12 de janeiro de 1913. Estudos primários na cidade natal, secundários em Niterói, universitário no Rio de Janeiro e Belo Horizonte, onde se formou em Direito (1932). Cedo abraçou o jornalismo, que exerceu em S. Paulo, Recife, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Nas funções de repórter viajou muito pelo estrangeiro, tendo acompanhado a FEB na Itália, de onde remetia crônicas de guerra que mais tarde foram reunidas no volume Com a FEB na Itália (1945). Desempenhou ainda cargos diplomáticos. Faleceu a 19 de dezembro de 1990.

§        Bibliografia:

- 1936: O Conde e o Passarinho;
- 1944: O Morro do Isolamento;
- 1948: Um pé de Milho;
- 1949: O Homem Rouco;
- 1951: Cinqüenta Crônicas Escolhidas;
- 1956: A Borboleta Amarela;
- 1957: A Cidade e a Roça;
- 1958: Cem Crônicas Escolhidas;
- 1960: Ai de ti, Copacabana;
- 1967: A Traição dos Elegantes;
- 1977: 200 Crônicas Escolhidas;
- 1984: Crônicas do Espírito Santo; Recado de Primavera.

Uma Lembrança

Foi em sonho que revi a longamente amada; sentada numa velha canoa, na praia, ela me sorria com afeto. Com sincero afeto - pois foi assim que ela me dedicou aquela fotografia com sua letra suave de ginasiana. Lembro-me do dia em que fui perto de sua casa apanhar o retrato, que me prometera na véspera. Esperei-a junto a uma árvore; chovia uma chuva fina. Lembro-me de que tinha uma saia escura e uma blusa de cor viva, talvez amarela; que estava sem meias. Os leves pêlos de suas pernas queimados pelo sol de todo dia na praia estavam arrepiados de frio. Senti isso mais do que vi, e, entretanto, esta é a minha impressão mais forte de sua presença de quatorze anos: as pernas nuas naquele dia de chuva, quando a grande amendoeira deixava cair na areia grossa pingos muito grandes. Falou muito perto de mim, e perguntei se tomara café; seu hálito cheirava a café. Riu, e disse que sim, com broas. Broas quentinhas, eu queria uma? Saiu correndo, deu a volta à casa, entrou pelos fundos, voltou depois (tinha dois ou três pingos de água na testa) com duas broas ainda quentes na mão. Tirou do seio a fotografia e me entregou.
Dei uma volta pela praia e pelas pedras para ir para casa. Lembro-me do frio vento sul, e do mar muito limpo, da água transparente, em maré baixa. Duas ou três vezes tirei do bolso a fotografia, protegendo-a com as mãos para que não se molhasse, e olhei. Não estava, como neste sonho de agora, sentada em uma canoa e não me lembro como estava mas era na praia e havia uma canoa. "Com sincero afeto..." Comi uma broa devagar, com uma espécie de unção. (...)
Foi em sonho que revi a longamente amada; entretanto, não era a mesma; seu sorriso e sua beleza que me entontecia haviam vagamente incorporado, atravessando as camadas do tempo, outras doçuras, um nascimento dos cabelos acima da orelha onde passei meus dedos, a nuca suave, com o mistério e o sossego das moitas antigas, os braços belos e serenos. Gostaria de descansar minha cabeça em seus joelhos, ter nas mãos o músculo meigo das panturrilhas. E devia ser de tarde, e galinhas cacarejando lá fora, a voz muito longe de alguma mulher chamando alguma criança para o café...
Tudo o que envolve a amada nela se mistura e vive, a amada é um tecido de sensações e fantasias e se tanto a tocamos, e prendemos e beijamos é como querendo sentir toda sua substância que, entretanto, ela absorveu e irradiou para outras coisas, o vestido ruivo, o azul e branco, aqueles sapatos leves e antigos de que temos saudade; e quando está junto a nós imóvel sentimos saudade de seu jeito de andar; quando anda, a queremos de pé, diante do espelho, os dois belos braços erguidos para a nuca, ajeitando os cabelos, cantarolando alguma coisa, antes de partir, de nos deixar sem desejo mas com tanta lembrança de ternura ecoando em todo o corpo.
Foi em sonho que revi a longamente amada. Havia praia, uma lembrança de chuva na praia, outras lembranças: água em gotas redondas correndo sobre a folha da taioba ou inhame, pingos d'água na sua pele de um moreno suave, o gosto de sua pele beijada devagar... Ou não será gosto, talvez a sensação que dá em nossa boca tão diferente uma pele de outra, esta mais seca e mais quente, aquela mais unida e mansa. Mas de repente é apenas essa ginasiana de pernas ágeis que vem nos trazer o retrato com sua dedicatória de sincero afeto; essa que ficou para sempre impossível sem, entretanto, nos magoar, sombra suave entre morros e praia longe.

ESTÉTICA

Exclusivamente cronista, Rubem Braga alcançou, mercê da continuidade com que se dedicou ao ofício e do talento que insuflou em seus textos, a condição de patriarca do gênero. Mestre de tantos escritores que depois dele se voltaram para a crônica, ganhou lugar certo nos quadros da Literatura Brasileira com uma forma naturalmente destinada ao consumo diário e ao esquecimento. Senso de oportunidade na captação do sui generis no fluxo cinzento do cotidiano, lirismo, resultante da empatia com os pequenos grandes dramas que marcam a passagem das horas, estilo plástico sem perder a clareza acessível ao comum dos leitores, - eis alguns traços que fazem de suas melhores crônicas peças literárias dignas de sobreviver à fugacidade do jornal ou da revista. Está no caso “Uma Lembrança”, que se lê e relê como um poema em prosa ou um conto poético, tal a onda de comoção que permeia o sonho com a amada longínqua. Banal a cena, banal a recordação onírica, mas é da banalidade que o consiste soube tirar o assunto, como cronista de garra e como escritor votado às questões do momento, inclusive as políticas, objeto de tantas crônicas. Tudo bem ponderado, a crônica atinge, na pena de Ruben Braga, o nível literário que lhe é permitido pela voragem jornalística, graças a instilar no dia-a-dia um “sentimento do mundo” que não se coagulou em poesia ou prosa ficcional em conseqüência, decerto do compromisso com o imediato que parece marca registrada do autor de “Uma Lembrança”.[1]


[1] MOISÉS, Massaud. A Literatura através dos textos. 24ª ed. CULTRIX. São Paulo, 2004.

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