quarta-feira, 27 de abril de 2011

DOMINGOS OLÍMPIO


Domingos Olímpio Braga Cavalcanti nasceu no dia 18 de Setembro de 1850, em Sobral, estado do Ceará. Formado em Direito pela Faculdade de Recife em 1873, retorna a seu Estado natal e de lá se transfere para o Pará em 1879, onde se dedica à advocacia e ao jornalismo. Em 1891, muda-se para o Rio de Janeiro, se entregando às mesmas ocupações. No ano seguinte, vai a Washington, EUA, como secretário da missão diplomática encarregada de resolver o litígio de fronteiras com a Argentina. Entre 1904 e 1906, funda e dirige a revista ‘Os Anais’. Faleceu no Rio de Janeiro em 6 de Outubro de 1906. Tudo o mais que escreveu, permanece inédito ou disperso.


 Bibliografia:

- 1903: Luzia-Homem, sua obra capital.
- 1906: O Almirante
- 1906: Uirapuru.

Luzia-Homem

A ação de Luzia-Homem transcorre no Ceará, em 1878. A protagonista que confere título à obra reúne qualidades físicas de homem e a beleza plástica de mulher. Integrada num grupo de retirante, logo sua figura soberba chama a atenção de homens diametralmente opostos: Crapiúna, soldado de maus bofes, e Alexandre, honesto e trabalhador. Crapiúna, a fim de conseguir as boas graças de Luzia, arma uma calúnia contra Alexandre, e este é preso sob acusação de roubo. Graças à interferência de Teresinha, pobre desgraçada, mas ainda animada por uns restos de virtude, tudo se esclarece e Crapiúna acaba sendo levado para a cadeia em lugar de outro. Assim, Luzia e Alexandre podiam realizar seu sonho: ir para a praia com a mãe dela, velha entrevada, casar-se. Em caminho, Luzia, enveredando por um atalho, topa com Crapiúna, que fugira da prisão para vingar-se de Teresinha. Lutam, e o soldado apunhala a moça, em seguida despenca no precipício. Os trechos que se vão ler, pertencem aos capítulos II e III:
O francês Paul - misantropo devoto e excelente fabricante de sinetes que, na despreocupada viagem de aventura pelo mundo, encalhara em Sobral, costumava vaguear pelos ranchos de retirantes, colhendo, com apurada e firme observação, documentos da vida do povo, nos seus aspectos mais exóticos, ou rabiscando notas curiosas, ilustradas com esboços de tipos originais, cenas e paisagens - trabalho paciente e douto, perdido no seu espólio de alfarrábios, de coleções de botânica e geologia, quando morreu, inanido pelos jejuns, como um santo.
Um dia, visitando as obras da cadeia, escreveu ele, com assombro, no seu caderno de notas:
"Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça."
Era Luzia, conduzindo para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinqüenta tijolos.
Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d'água, que valia três potes, de peso calculado para a força normal de um homem robusto. De outra feita, removera, e assentara no lugar próprio, a soleira de granito da porta principal da prisão, causando pasmo aos mais valentes operários, que haviam tentado, em vão, a façanha e, com eles, Raulino Uchoa, sertanejo hercúleo e afamado, prodigioso de destreza, que chibanteava em pitorescas narrativas.
Em plena florescência de mocidade e saúde, a extraordinária mulher, que tanto impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada por um manto de algodãozinho, cujas curelas prendia aos alvos dentes, como se, por um requinte de casquilhice, cuidasse com meticuloso interesse de preservar o rosto dos raios do sol e da poeira corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto, donde ao tênue borrifo de chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombras de relva virente e flores odorosas. Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de consortes de infortúnio, e quase não conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração.
— É de uma soberbia desmarcada - diziam as moças da mesma idade, na grande maioria desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.
— A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona - murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas insinuações galantes.
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A população da cidade triplicava com a extraordinária afluência de retirantes. Casas de taipa, palhoças, latadas, ranchos e abarracamentos do subúrbio, estavam repletos a transbordarem. Mesmo sob os tamarineiros das praças se aboletavam famílias no extremo passo da miséria - resíduos da torrente humana que dia e noite atravessava a Rua da Vitória, onde entroncavam os caminhos e a estrada real, traçado ao lado esquerdo do Rio Acaracu, até ao mar. Eram pedaços da multidão, varrida dos lares pelo flagelo, encalhando no lento percurso da tétrica viagem através do sertão tostado, como terra de maldição ferida pela ira de Deus; esquálidas criaturas de aspecto horripilante, esqueletos automáticos dentro de fantásticos trajes, rendilhados de trapos sórdidos, de uma sujidade nauseante, empapados de sangue purulento das úlceras, que lhes carcomiam a pele, até descobrirem os ossos, nas articulações deformadas. E o céu límpido, sereno, de um azul doce de líquida safira, sem uma nuvem mensageira de esperança, vasculhado pela viração aquecida, ou intermitentes redemoinhos a sublevarem bulcões de pó amarelo, envolvendo como um nimbo, a trágica procissão do êxodo.
Luzia viera na enxurrada, marchando, lentamente, a curtas jornadas, e fora forçada a esbarrar na cidade, por já não poder conduzir a mãe doente. Do capitão Francisco Marçal, o homem mais popular da terra, tão procurado padrinho, que contratara com o vigário pagar-lhe uma quantia certa, todos os anos, por espórtulas dos batizados, obtivera, por felicidade, uma casinha velha e desaprumada, onde se aboletou com relativo conforto. A vida lhe correu bem durante seis meses. Havia trabalho e ela ganhava o suficiente para se prover quase com fartura, Mas o coração pressentia, então, com vago terror, o perigo das pretensões de Crapiúna e ela procurava, por todos os meios, evitá-lo. Seu primeiro impulso, depois que lhe ele ousara falar em termos desabridos, foi anoitecer e não amanhecer; emigrar, confundir-se nas levas de famintos em busca das praias ubertosas, com os lagos povoados de curimãs, em cardumes assombrosos, os tabuleiros irrigados por orvalho abundante, cheios de plantações, e confinando, em contraste consolador, com a planície seca e estorricada.
Além se desdobrava o grande, o soberbo mar infindo e glauco, a rugir lamentoso, despejando, envolta em rendas de espuma, a generosa esmola de peixes, moluscos e crustáceos saborosos. Com a proteção de Maria Santíssima venceria a travessia. Vinte léguas galgam-se depressa. Talvez tombasse, como os míseros, cujas ossadas alvejantes, descarnadas pelos urubus e marcarás, iam marcando o caminho das vítimas da calamidade. (...)

ESTÉTICA

Luzia-Homem confina-se nos limites do Naturalismo, mas dum modo sui generis, a principiar da conformação física da heroína: “encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão”. Na antinomia da compleição, que lhe reflete a dualidade meiguice versus energia moral do temperamento, estampa-se a batalha travada entre o substrato romântico (representado pela beleza) e a doutrinação naturalista (concentrada na força). De qualquer modo, o retrato verossímil de uma retirante privilegiada atenua-se com a presença de laivos românticos por trás da formosura e robustez de caráter, uma vez que Luzia, sobrenadando no mar de miséria desencadeada pela seca, defende a honra a todo o custo, projeta um casamento pacato com Alexandre, e acaba pagando com a própria vida a compostura ética e as prendas físicas de que a dotara a natureza. O Romantismo subjacente ao perfil tipológico de Luzia ainda se observava no protagonista, antípoda de Crapiúna, vilão da estirpe de Manecão, de Inocência. Além das figuras centrais do drama, há que registrar uma com que personagem, a seca nordestina, patente no segundo trecho, começando por “A população da cidade triplicava”. Contrariamente a José de Alencar, cujos romances regionalistas se caracterizavam por uma expressa intenção apologética, o sertaneijismo de Luzia-Homem procura respeitar fielmente a realidade dos fatos, por mais cruentos que sejam. De onde o vigor e a fidelidade do painel social, que se mostram no romance todo e nos excertos selecionados, e que apenas não alcançam tensões mais elevadas em razão do estilo: a linguagem, menos apurada do que era comum na época, por certo colabora para a atmosfera de reportagem que domina a narrativa, mas rouba-lhe parte do fulgor e amortece o impacto que a visão das cenas dos retirantes poderia ocasionar. Não obstante, Luzia-Homem enfileira-se junto do melhor que nosso Realismo produziu, e cooperou para o clima de interesse afetivo pelo Nordeste que viria a fomentar o romance engajado de 1930, com Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e outros.

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